10/30/2009

A construção de uma Razão Degustadora é o guia iluminista para o consumo moderno do alimento


Se você topar com alguém diante de um café expresso sem açúcar, que afasta a espuma com as costas da colherinha, observa o creme com ares de quem disseca um inseto, leva a xícara ao nariz para sentir o aroma e só depois leva à boca, pode estar certo: está diante de um “barista”.
Não adianta procurar: a palavra não está no Houaiss. Esse tipo de gente que sabe tomar um café corretamente (isto é, com novos e diferentes gestos) é uma novidade, mas já existe até revista especializada em cafés que devem ser tomados dessa forma. O lobby do novo café quer mudar a nossa vida.
Coberto de razão, o crítico Arnaldo Lorençato chamou a atenção, sobre tendências modernas do consumo 1, para essa moda brasileira de se “degustar” tudo: vinho, café, chocolate, uísque, cachaça, sal, azeite, e até água... A própria água universal (H2O) parece tão múltipla que uma “trademark” (Pepsi-Cola) não se peja em chamar seu novo refrigerante de sucesso justamente H2OH!
Sem dúvida é mais seguro nos cercarmos de conhecimentos que garantam o insosso da água diante das ciladas de sabores. Mas esta tendência de se buscar guias seguros em meio à incerteza dos sabores sequer é uma moda “brasileira”. Apenas chegou aqui, para nosso espanto, convertendo-se em um novo ramo de negócios e entrando regularmente nos cálculos do marketing da indústria da alimentação, especialmente no segmento de luxo.
A palavra deriva do francês “déguster” e surge no início do século XIX. Ela nos indica que o gosto não é algo imediato e irrefletido. Mas por que já não podemos confiar na primeira sensação que o paladar nos sugere? Como e por que se passa do gosto/não gosto imediato (e infantil?) para o gostar reflexivo?
Degustar é uma prática que nos leva à fronteira onde parece que vamos perder a simplicidade de uma sensação cristalina em troca da complexidade que, a rigor, não permite vislumbrar um final. Degustar é tomar o paladar como um sentido relativamente autônomo que, no entanto, precisa ser educado para nos conduzir entre a multiplicidade das coisas que se escondem por trás da unidade ilusória de sabores. O paladar, guiado pela degustação, é como o cego a quem desejamos levar a reconhecer a luz.
A filosofia da degustação quer dar sentido à experiência sensorial moderna. Situa o indivíduo diante de uma dimensão do comer que, até então, parecia subjetiva, mas hoje se apóia em múltiplas instituições que reconstroem a sensação: laboratórios de indústrias, pesquisas agroalimentares que geram novos conhecimentos sobre os alimentos, desenvolvimento de equipamentos culinários e de mensuração sensorial, ensino de gastronomia e produção literária especializada. O “gosto” torna-se o objeto central do marketing alimentar e, como tal, se inscreve numa nova lógica de vida em que o aspecto subjetivo é acessório.
O primeiro passo dessa filosofia é reconhecer que a autonomia do paladar é falsa. Não por acaso se procedeu à total reformulação da velha teoria sobre a fisiologia do gosto do século XIX, como expressa por Brillat-Savarin na sua bíblia gastronômica (“A Fisiologia do Gosto”). O que este texto tinha de inconveniente era apoiar a noção do gosto exclusivamente nas papilas gustativas, representado a língua a partir de um “mapa” onde o doce se situava na sua ponta, o salgado nas laterais, o ácido no meio e, finalmente, o amargo ao fundo, escorregando pelo abismo da garganta.
Essa classificação começou a se mostrar uma falácia já no início do século XX, quando se descobriu um quinto sabor –o umami–, que simplesmente não tinha representação espacial no tapete da língua. Hoje, sabemos que as papilas são mais sensíveis e versáteis do que se imaginava e que a nova língua que lambe o mundo não se situa apenas dentro da boca.
A moderna fisiologia do gosto, como o físico-químico Hervé This tem apontado, não se enraíza apenas no paladar. Ela reconhece os demais sentidos como instrumentos de apropriação das qualidades dos alimentos (cor, aroma, textura, temperatura; e a “crocância”, que convoca, ao mesmo tempo, o tato e a audição) de modo a constituir uma noção complexa, em que o paladar já não é necessariamente o primeiro solista da orquestra. O próprio “mapa” da língua não resistiu à análise da ciência moderna, ruindo como um preconceito do século XIX e persistindo apenas como um erro dos livros escolares de ciências.
O paladar já não é o cego a quem ensinamos a reconhecer a luz. A superação da cegueira não encontra solução no olho, mas nos demais sentidos; do mesmo modo o gosto se enraíza na totalidade do ser e –por que não dizer?– no próprio discurso sobre a comida. Nessa nova condição, o paladar se torna um guia exploratório do mundo, deixando na sua pré-história a fase na qual era o identificador de quatro sabores.
Para a filosofia baseada na moderna fisiologia do gosto o indivíduo é portador de sentidos flutuantes, flanantes, que já não podem se fiar em “instintos” ou em tradições que nos enganam não porque sejam fisiologicamente falhos, mas porque são socialmente instáveis. “Comer bem” já não é comer o que se gosta mais por força de hábitos herdados da infância, mas um ato que deve realizar, a um só tempo, uma função nutricional e uma função estética.
Se o cálculo de calorias aprofunda a nossa feição de máquinas biológicas, o trabalho sobre a cor, a forma, a textura, o aroma do que vai à boca, aponta para um outro valor que emerge como experiência estética associada ao comer. A tradição ocidental começa a explorar essa dimensão do comer pela manipulação do prato que, nos anos 1970, é levado à mesa pela primeira vez como um “arranjo estético” acrescido pelo chef, seguindo uma clara influência japonesa.
Mais tarde, forma-se uma especialidade nova, chamada “desenho culinário”. Essa jovem disciplina nasce entre 2002, com o trabalho do desenhista Marco Brétillot sobre a forma, a cor e a textura de uma preparação, e 2006, quando a Fundação Raymond Loewy concede o prêmio de desenho europeu a Ferran Adrià, que, como se sabe, também participa da Documenta (mostra de artes na Alemanha). Como o próprio Adrià diz, “a cozinha é uma linguagem mediante a qual se pode expressar harmonia, criatividade, felicidade, beleza, poesia, complexidade, magia, humor ou provocação” 2.
Essas novas funções da alimentação não brotam das panelas (e nem podem ficar a cargo das avós e seu “savoir faire”). Derivam do seu novo lugar num mundo que está tão distante do comer cotidiano que parece mesmo algo extraordinário, ou uma confissão de fraqueza, que um chef possa dizer, numa entrevista qualquer, que gosta de pastel de feira. O poder do chef advém não de suas preferências ou sensibilidade de paladar, mas dessa espécie de função sacerdotal que se atribui a ele: além do sabor, ele “combina” cor, aroma, textura, crocância, temperatura na construção de um espetáculo de arte evanescente, em que o comensal ultima o sacrifício.
A gastronomia já não tem uma “missão”, como foi a de “aliviar” exageros no período da nouvelle cuisine; hoje, partindo da simplicidade máxima, deve construir texturas, combinações e efeitos visuais impactantes sem perder pé na excelência das matérias primas. Nas discussões modernas –e esta parece ser a base da nova crítica gastronômica– avultam os aspectos estéticos dos pratos, especialmente os escultóricos e cromáticos e as técnicas ilusionistas.
Mesmo o prato, onde se apóia o alimento, praticamente desapareceu depois de mudar várias vezes de forma e de cor-valendo hoje promover a composição alimentar sobre uma superfície qualquer, não delimitada a priori por uma borda. Aqui temos, transposta para a gastronomia, a mesma discussão sobre o suporte das artes plásticas.