A multiplicação dos objetos
Só a Razão Degustadora pode nos conduzir por esse universo do sentido moderno do comer ao qual o hábito cotidiano já não nos dá acesso. O seu ponto de partida é aquele da multiplicação dos objetos subsumidos na aparência de unidade de um sabor qualquer. Excelentes exemplos são os azeites, os vinhos e o sal ou a água. Sob esses produtos, desvenda-se a lógica dos varietais orgânicos e dos “terroirs” como fundamentos das diferenças entre as coisas que vão à boca.
Não faz muito tempo, os azeites nos chegavam pela sua procedência: portugueses, espanhóis, gregos, italianos, franceses etc. Quanto à qualidade, eram “refinados”, “virgens”, “extra virgens”, de “primeira prensagem”. Hoje, a indústria do azeite espanhol, por exemplo, consegue diferenciá-los pelas variedades de azeitonas das quais derivam: picual, cornicabra, hojblanca, lechin de Sevilla, empeltre, arbequina, verdial, picudo.
A cada uma dessas aplicam-se as designações de qualidade, multiplicando-se por 32 os produtos que, antes, se reduziam a quatro. Assim, o azeite, a partir do final do século 20, tornou-se coisa múltipla, polifacetada nos usos, e não algo que simplesmente se coloca sobre a salada. Do ponto de vista do consumidor, ele nunca saberá o que está comendo se antes não passar pelo indispensável treinamento que só a degustação dirigida propicia.
Também a uva carmenère, por muito tempo tomada por extinta, foi desentranhada dos vinhedos chilenos por um enólogo francês, que foi capaz de “vê-la” pela aparência distinta das suas folhas, disfarçada entre o que se acreditava ser a variedade merlot. Desse modo multiplicou-se o que antes era o merlot.
Darwin já havia mostrado como o homem opera como selecionador das espécies naturais ao desenvolvê-las sob domesticação, frisando os caracteres que lhe são úteis. As raças de cães são o melhor exemplo desses seres construídos pelo homem.
A novidade atual reside na atenção que o capitalismo dedica à natureza, apontando pequenas diferenças construídas no passado e que não se mostravam úteis, sendo abandonadas ou “esquecidas”; agora, os sentidos precisam ser reeducados para dar conta da multiplicidade mascarada. Exige-se, acima de tudo, refinamento e sutileza analítica, tanto nos laboratórios das indústrias como no prato.
Outra fonte de variedade é a origem ou o “terroir”. A teoria do “terroir” se baseia na noção mágica de que os atributos do lugar –seja a terra, o clima ou o próprio trabalho artesanal de uma comunidade- transmitem qualidades singulares aos alimentos. Nesse caso as variedades valem não pelos caracteres genéticos, mas pela sua adaptação: a variedade shiraz seria distinta na África do Sul, na Austrália ou na França; a malbec, tão bem adaptado à Argentina, teria nascido no lugar errado (Cahor, França) para atravessar o oceano e, finalmente, encontrar o seu verdadeiro lugar; o frango de Bresse (França) seria inconfundível no seu paladar, e assim por diante.
O próprio “mundo inanimado” aparece como múltiplo. Sabemos que, basicamente, existem dois tipos de sal: o sal marinho, que é extraído através da evaporação da água do mar, e o sal de rocha, conhecido como sal-gema, retirado de minas subterrâneas que são mares e lagos pré-históricos que secaram.
A diversidade de origem e de cristalização pode ser retida no produto alimentar. Temos o sal rosa do Himalaia, que é um sal-gema; e os sais marinhos, como o de Guérande, na França, considerado único pelo seu “sabor e aroma”, uma “flor de sal”; o sal escamado da Nova Zelândia, o sal alaranjado das ilhas Aloha e assim por diante.
Num mundo comestível que se multiplicou, as próprias palavras se mostram insuficientes para dar conta da diversidade. É preciso criação lingüística para descrever o novo mundo. O caso do vinho é o mais expressivo. Existe um enorme léxico para descrever o vinho. São mais de 600 palavras ou “descritivos” que funcionam bem no que se refere aos aspectos relacionados com a fisiologia e a percepção sensorial, mas claudicam quando a questão é a tradução terminológica e a comunicação 3. A própria iniciação nesse vocabulário toma a feição do aprendizado de uma nova língua. Cursos são pagos para aprender a degustar, discorrer sobre as qualidades do vinho e concluir qualquer coisa a respeito que nos dote de um discurso legitimista.
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